26 de agosto de 2011

PONTE EM RUÍNAS: O TRAJETO DO MISTÉRIO.



Um labirinto singular, que desafia a imagem clássica dos corredores monstruosos com uma porta de entrada e outra de saída, a obra do orfista Mário de Sá-Carneiro viabiliza o ingresso no caminho enigmático por vários acessos. Esta pode ser uma das definições de uma poética marcada por um confessionalismo exacerbado, mascarado pelo sentimento abissal de morte, e por uma síntese dos contrários, que subverte as realidades dissonantes do Eu, nos acordes da Alteridade, para revelar, em última instância, a malha textual daquele poeta, às avessas.

Percorrendo esta trilha ultrassimbólica, os textos sá-carneirianos são, de forma indubitável, as representações múltiplas de um ser híbrido, polimorfo, que distorce nas sombras a opulência de uma esfinge em queda livre. Queda, o grande mote da ascensão em Mário de Sá-Carneiro; tombo, o precípio que derrubou dos céus seres alados, astros, palavras e corpos obesos para que o triunfo de uma póetica, em processo de desfiguração, revelasse a outra face do abismo.

O poema 7, emblemático em seu título, pois carrega na ordem numérica o traço perfeito da divindade, é substância concêntrica e minimalista de uma personagem, que funde no Eu, em rota de colisão, a identidade cívica e a impressão artística de um homem que (di)vagava pela bela Paris decadentista, impulsionado pelos arroubos da flanerie, que (tra)vestiu um autêntico dandy, profundamente melancólico. Cenário anti-ideal para que um herói emergisse das sombras a fim de mudar o curso de uma estória fadada ao fracasso, ao embotamento, ao fim de si-mesma, e, principalmente, à falência de todas as estruturas que sustentam as entidades, no decurso da própria desconstrução (ou da destruição).

A dúvida, uma condicionante invariável, presente na poética em tela, é dessemelhante das imagens plasmadas noutros representantes da poesia e da prosa, em épocas distintas. Para além de um barroquismo excêntrico, previsto em Mário de Sá-Carneiro, sua herança romântica, em time tardio, entra em conjunção com a dualidade de um ser, que desaparecera na Idade Média, e que sobrevivia entre a dor de ser e a vontade de não ser. Barroco e Romantismo se cruzam, de forma espetacular, no tempo e no espaço, marcam a identidade confusa, que fora o autor de A Queda, e fundam, no texto esfíngico, a grande depressão: uma tessitura singular, cuja topografia é marcada por um acidentalismo monumental e um declive de dimensões sombrias. A realidade fantasmagórica e misteriosa, por este turno, ultrapassa os portões de uma existência duvidosa, onde o símbolo é esgarçado ao tensionamento máximo, angustiando um sujeito excedente, e que fratura, implacavelmente, o Eu, impedindo que pontes sejam erguidas, e as que já estavam suspensas e soberanas sobre o ar se desmoronem sobre si mesmas. Neste contracenário, não há eus, não há mins e, também, não há outros. 

Em quatro estrofes singulares, o poeta exerce sobre si mesmo a força máxima de uma entidade que se retrai, condensando-se e formulando a súmula da dúvida de um Eu, no devaneio da completude do / de Si, no arco tangível da Alteridade, mas que afunda, inevitavelmente, ao se tornar o ator principal na tragédia de um Mim indefinido, opaco e sem sentido. Assim, o artífice declara na primeira estrofe do poema exemplar:

                                       Eu não sou nem sou eu nem sou o outro,

A afirmação peremptória acerca da consciência universal sobre a sua identidade é uma navalha na carne para os leitores que intentam buscar a identidade de um sujeito travestido de mistérios, e que fabula nas mãos a morte e a vida como se fosse um ilusionismo atraente e desmedido. Ter a certeza de que a negação do Eu não é ele mesmo (o si-próprio) e nem o outro é o índice que consolida a dúvida não como um dos estados que corroem as personagens, em constante fusão, na poética dos tombamentos; mas, antes, aquela é a substância que se constitui na essência do texto sá-carneiriano; fluxo originário do qual emana a mensagem cifrada de uma tessitura monológica, melancólica, e, por fim, vertiginosa.

Cumpre acrescentar, ainda, à consciência estonteante do poeta, que a afirmação emerge da visão sobre seu espaço de convivência, em nulidade crescente, e de uma poética de convergência reflexiva, onde as vozes do eu cívico e do eu artístico foram tão somente modulações de um eco em um tom desesperado por alguém que passou a vida inteira tentando ser e, desafortunadamente, não logrou a realização do grande sonho: o encontro consigo mesmo, que eclipsaria as faces apartadas e as identidades adversas no firmamento dos seus ideais. 

O poeta prossegue na segunda estrofe:

                                       Sou qualquer coisa de intermédio:

O eu lírico, afunilando a sua condição existencial, não teme a declaração ou a proclamação que faz de si, ao se colocar na posição do intermezzo; o meio, aquilo que orbita entre o ser e o não - ser, e, portanto, ocupando o não - lugar. Neste sentido, há um vácuo pleno que, estranhamente, preenche os espaços de uma personagem que, à beira da insanidade, mergulhava no profundo ensaio da megalomania, e vivia afastado de si mesmo e do mundo que o circundava; flutuando na realidade como asa perdida de um pássaro qualquer. Estar no meio é o sinal flagrante de um homem em crescente estado de morbidez e de um eu lírico estático, que tendia, conseqüentemente, para o próprio arruinamento. O intermédio não expande o Ser, em Mário de Sá-Carneiro, mas, antes, o contrai, progressivamente, até sua implosão - fenômeno que desastra todas as realidades coexistentes, no universo da prosa e da lírica, por um lado, e na letra viva, que fora o homem cívico, com o advento do suicídio, por outro lado. 

O poeta continua em sua aparente digressão: 

                                         Pilar da ponte de tédio   

Impressiona, sobremodo, a imagem exalada - movimento sinestésico - do poema em questão. Ser o pilar da ponte de tédio, inicialmente, é uma continuação da afirmativa singular sobre não ser nenhuma instância identificatória dos sujeitos fundidos, expressa na primeira estrofe, e corroborada na segunda estrofe, quando o Eu, refém da letargia, perde seus movimentos vitais. Ora, a observação arguta do possível leitor de Mário de Sá-Carneiro  o  conduzirá  à  percepção de  que  a  ponte  está  em  franco  processo  de  desabamento. O não - ser, enraizado num eu indigente, consciente de seu estado de perdição, e agravado, ainda, pelo distanciamento semântico da personalidade do eu em (não) ser o outro, são a causa primária e irrefutável para que a pseudoestrutura que sustenta o Eu e toda sua cadeia psíquica e metapsíquica, respectivamente, se desmantele por completo. A ponte, dessa forma, desaba porque o monumento, simultaneamente, é / está frágil. Eis, portanto, o clímax da poesia e a verdade em processo de deciframento do texto angular, no decurso da análise, e que sintetiza a personalidade de Mário de Sá-Carneiro, alternando entre a entidade cívica e a entidade artística. O ser e o estar, confundidos na argamassa, que deram forma ao pilar da ponte, deflagram a debilidade de um sujeito, que se apresentava impecável ao mundo das futilidades e das coisas destituídas de quaisquer valores, através de sua aparência gorda, que o poeta tanto desprezava, mas que, em essência, não passava de um solo movediço; e, portanto, condenado à queda, ao fracasso e à descontrução de todas as realidades constituintes do Eu. O Eu, em sua amplitude significativa e metassignificativa, deixara de ser para desaparecer entre os escombros de uma personalidade que não era mais, que não estava mais. O Eu estava perdido, disperso, e sua reunificação era o ensaio do impossível na tessitura cívica e artística, em Mário de Sá-Carneiro.

A falsa estrutura, que concorreu, paradoxalmente, para o soerguimento da ponte, aparentemente vigorosa, mas que assistiu ao solapamento das estruturas daquela, então partida, denunciou a queda violenta do Eu, denotando, por conseguinte, uma realidade que, em verdade, jamais fora; i.e., o pilar de tédio denunciou duas realidades distintas no poema intitulado 7. Quais sejam: não havia pontes, pois não havia travessias. O que existia, de fato, era um desejo voraz do Eu em alcançar um Outro, tão misterioso quanto a própria natureza da ponte. E, por não haver pontes, o Outro sequer existira, também. Sobrara, portanto, antes da elevação, que não houve, da ponte que nunca existiu, o tédio, que, por sua vez, permaneceu como sobrevivente único de uma tragédia mais do que anunciada. Pilar feito de tédio ou o tédio que formou o pilar, o Ser em Mário de Sá-Carneiro é visivelmente revelado nesta síntese poética de beleza rara, pois, para além das instabilidades dos diversos eus, componentes na tessitura sá-carneriana, e reflexos da vida daquele, o que se constata, com efeito, é uma essência arenosa, fraca e imprópria para o fincamento de qualquer estrutura, de qualquer sustentáculo.

O poeta finaliza o poema:

                                         Que vai de mim para o Outro.*

O sonho é congelado nas pérfidas palavras do poeta, pois o delírio, neste caso, um desdobramento do tédio que se prolonga, após a destruição e a conseqüente desfiguração do Eu, nada mais é do a transfiguração de um sujeito soçobrado por uma melancolia sem fim. O estado melancólico, autor da angústia existencial que acompanhou o Eu em Mário de Sá-Carneiro, ao longo de sua trajetória cívica e artística, o arremessa contra o próprio mistério quando o eu lírico, no ápice da desconstrução de si, evoca o Mim como porto final e curvo para tentar a conexão com a Alteridade; jamais atingida, jamais completada. O sonho, neste sentido, uma visão megalômana do poeta, reverte sua matéria de fundação para se transformar no pesadelo, através da emergência do Mim, uma instância desdobrada do Eu, que perecera; uma lasca desprendida do sujeito que não tem corporeidade, mas apenas o traço sombrio de alguém ou alguma coisa que tivera um sentido de ser, num passado remoto, e que até as parcas memórias traíram, isolando a personagem Mário de Sá-Carneiro em uma solidão mortal.

O Mim é a última fração do ser em Mário de Sá-Carneiro, e por delinqüir o próprio sujeito, este último, sob restos de uma ponte destruída, confunde-se, irremediavelmente, com o mistério que circunda o Outro. O mistério é nuvem de fumaça a envolver o Mim e o Outro como deslocamentos do Eu, que, antes da implosão de si, já experienciava a desconstrução aguda da personalidade no itinerário da vida; tal qual fizera o poeta que, no decurso de seu trajeto existencial, viveu intensamente a Morte como se fosse o seu grande projeto; o seu prêmio, a sua vitória e, finalmente, a sua sina.

Na ponte, um mistério; no mistério, um trajeto; no trajeto, um Eu que desconhecera a si mesmo, e um mim que não fora capaz de conhecer o Outro. Entre o mim e o Outro, um Eu: o intermédio, o tédio e o próprio mistério de Ser.  


- Referência:
 * Mário de Sá-Carneiro, obra completa, volume único, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, p.82.

Um comentário:

  1. O que vou escrever, depois de ler um texto como este?! Deixa eu primeiro voltar ao nosso planeta! Agora sim. É, talvez, o homem que entendeu a existência terrena, e teve a coragem de viver à sua maneira. Se ele consegue, ainda hoje, nos tirar do chão, é porque viveu e escreveu seus poemas assim, em um lugar diferente.

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