2 de julho de 2011

A ESFINGE DECIFRADA

                                                  
                                                              Castelos desmantelados,
                                                              Leões alados sem juba... *
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Crespuscular por excelência, a obra do orfista Mário de Sá-Carneiro fabula na luz eterna o mito arcaico das sombras. Sombras que perseguem, de forma aviltante, sujeitos decadentes, vidas derrocadas e seres em estado de desfazimento completo. Figurações de um Eu, que se desmembra da realidade interior; que se distancia da realidade exterior para flutuar como pluma arrancada da asa de alguma ave que, deserdada de seu bando, escala o firmamento ígneo em voos solitários.
Por este turno, a compreensão de um ser, que se desintegra em sua totalidade, a partir do afastamento que promulga de si-próprio, elucida sentenças, que revelam o quantum de verdade do texto poético do autor de Dispersão, para além de qualquer teorização ou emplacamento científico, que engesse a forma e a substância na  literatura dita sá-carneriana. Assim, o caminho para adentrar o universo do referido artífice é o mais estranho possível: é o não - caminho, a não - vereda, a não - estrada. A negação de sua própria realidade é a senha de acesso para o mundo do astro que tomba dos céus, desastrando corpos e mensagens cifradas, e dos monstros, de natureza bestial, que voam ao encontro monumental da Morte. Eros e Tânatos eclipsam seus corpos num sol que morre em poente fulgurante.
O Eu que se afasta do Si-próprio e a divagação de um Mim, sempre flutuante, como a penugem perdida de um pássaro, ou, quiçá, a asa frenética de uma borboleta - imagens que constroem o portrait de / em Mário de Sá-Caneiro -, são duas realidades semelhantes e dessemelhantes entre si, que concorrem para o estremecimento e o esfacelamento inevitável do sujeito enigmático na poética sá-carneiriana, quer seja na prosa, quer seja na lírica. O Eu, a modulação da voz daquele que tenta ser, mas que jamais alcança o sonho ideal; o Si-próprio, quase uma entidade ou uma instância idefinida; e o Mim, o alvo final de um processo melancólico, que culmina na desconstrução do ser na poética em constante movimento de ascensão e queda. Ícaro empreende o voo magistral de fuga de um labirinto assassino, mas o mar o acolhe, após seu ato desmedido de desobediência. Cenas trágicas para um Eu, apartado do Si-Próprio, esvaziado de sentidos e,   por conseguinte, destoante de um Mim, em estado de perdição. 
No tocante ao Eu, a poética sá-carneiriana denuncia, de forma convincente, quão próxima é a malha textual em tela da ambiência romântica, que plasmou as mentes dos baluartes do Romantismo, ao longo do século XIX. O Eu, para os românticos, fora a base de sustentação de uma literatura, que fundou a pátria dos idealismos e das ideologias. Todavia, à traição empreendida pelos burgueses, à época da Revolução Francesa, seguiu-se, por conseqüência, o estado de frustração profundo, que acometeu os românticos, e que perdurou até a útltima geração daqueles, também denominada Ultra-romantismo. Frustração que minou as estruturas do sujeito, que descobriu na morte o escape final de um projeto fracassado.
Mário de Sá-Carneiro, classificado pela crítica literária de romântico tardio, aproximou-se da estética fracassada, nos tempos da Belle Époque, por causa das temáticas relacionadas à solidão atlântica, da melancolia sem fim, e, principalmente, da morte como ato supremo, inaugurando um modelo de herói, às avessas. No entanto, o parentesco que uniu o poeta órfico a seus pares, em períodos distintos, não reeditou as agruras dos românticos tais quais como foram absorvidas pelo poeta português. Fora de seu tempo, e com a face deslocada para este passado inglório, Mário de Sá-Carneiro, através de seu texto ímpar, em que a dispersão do sujeito constitui-se na tônica basilar de sua obra confessional, onde o eu cívico (o homem) se confunde, propositalmente, com a personagem (eu artístico) travestida e mascarada de várias formas, no texto prosaico e no texto lírico, ambivalentemente, individualiza-se para dar as costas a um tempo marcado pelo frenesi e por um progresso selvagem, que prometia o malogro do Homem em detrimento de um modernismo, e que, por sua vez, engoliria os textos, as palavras e os seres. Cravado em seu tempo, portanto, e com o olhar lançado para uma época, que jamais alcançaria, o Eu fragmentado de sua obra, quase mítica, promulgaria uma realidade para além do Si; virtualmente localizado no não - espaço; exuberantemente adimensional. O Eu, em última análise, constitui-se no elo que se quebra diante da possibilidade do sonho para atingir o estado pleno de felicidade, que se transforma no pesadelo mórbido, marcado pela desgraça e pelo projeto de auto-aniquilamento, este útimo, levado a cabo pelo poeta, ao cometer o suicídio, no fatídico 26 de abril de 1916, em Paris.
No que tange ao Si-próprio, a malha textual em Mário de Sá-Carneiro alude simbólica e metassimbolicamente à transfiguração do Eu, que centraliza o desejo exacerbado de um sujeito em desvio constante, e que, em cuja parabólica, os incidentes tornar-se-iam cógidos cifrados para a construção de um desastre iminente. O Si-próprio modula a face da Megalomania e deflagra, na tessitura artística, nos níveis narrativo e lírico, respectivamente, a face narcísica de um sujeito que descobre no espelho a trajetória do não-ser. A vontade de ser o que não pode, o quase como estado de incompletude e o excesso de subjetividade rompem  as cadeias do ego e criam uma instância vazia, e, neste sentido, entregue à própria sorte; à deriva. O Si-próprio, em Mário de Sá-Carneiro, é tão somente um apelo a uma voz que se torna refém das armadilhas mortais de um eco doentio, mântrico, e, em vias finais, maldito. Rubricas extraídas de um romantismo mais do que tardio, e concorrentes para a construção da obesidade sentimentalesca na personagem que se funde no texto, e no texto que se confunde com a própria morte. O Si-próprio, na condição de reflexo oblíquo, produziu, na zona especular e abissal do homem que busca para além do Eu a sua verdade existencial, a decifração do grande enigma de sua vida, magistralmente tecido em sua literatura: a solidão de contornos universais, e que faz doer na alma um passado arcaico no qual toda Humanidade vivera.
No que concerne ao Mim, o sujeito realiza o grande sonho: o de ser, através do não - ser. A migração fragmentária e ontológica do Eu para o Mim determina a equação da morte na obra de Mário de Sá-Carneiro, na ilustração daquela na tesstitura artística, através das personagens e dos ambientes em tons decadentes, e da personagem que se funde na entidade cívica.  A fratura das realidades é a característica do Mim, que não se sustenta em paradigmas lógicos ou reais, mas, antes, finge buscar o estado de realização plena para tombar como astro sem luz em solos movediços. Tudo é queda; tudo é perdição; tudo é dispersão. O Mim fabula o enigma da solidão, que vislumbra na Morte a possibilidade de estancar a dor de um homem que se quer mítico; talvez um deus, um fantasma ou qualquer coisa indefinida a pairar nos escaninhos soturnos da recordação.
Mário de Sá-Carneiro e sua letra literária são vitrais lúdicos de uma verdade que não é revelada pelo olhar hipnótico de um monstro, que amargou o seu próprio fim, ao ser descoberto por um andarilho sem pátria e quase sem destino. Edipianamente, o pobre moço das ânsias, ao contemplar a forma bestial da Esfinge, na hora da morte, descobriu na queda a redenção de um corpo desmantelado. Astro, mito ou semi-deus, Mário de Sá-Carneiro reunificou o Eu, o Si-próprio e o Mim em instância singular. A Esfinge decifrada é o silêncio de Tânatos, que transforma as dores humanas em brilhos siderados na eternidade dos deuses sem nomes.


Nota: 

* Mário de Sá-Carneiro, obra completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, p.63. 

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