9 de novembro de 2011

UM VOO PARA A MORTE

 

                                                                    A grande ave doirada
                                                                                          Bateu asas para os céus,
                                                                                          Mas fechou-as saciada
                                                                                          Ao ver que ganhava os céus.*


A obra de Mário de Sá-Carneiro é ímpar em sua constituição, em sua representação e, sobretudo, em sua morfologia, ao ultrapassar as fronteiras do idioma na qual foi escrita e ancorar a sua dimensão poética na linguagem mítica: substância que dá forma à Poética do Desastre, em todo seu esplendor e acentos significativo e metassignificativo, respectivamente. O mito, desse modo, presentificado na poética sá-carneiriana, é o mote fundador de um simbolismo sui generis, que transmutou a musicalidade, a plasticidade, os sentidos e o cromatismo, que caracterizaram a estética homônima, e revigorou a escrita de um romântico tardio com feições barroquistas, na ribalta da decadência e no Modernismo, que, então eclodia na Europa, no início do século XX.

                                     Um pouco mais de sol - eu era brasa.
                                     Um pouco mais de azul - eu era além.
                                     Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
                                     Se ao menos eu permanecesse aquém...(1)
                                                                                  
A singularidade de um texto, que emerge como mensagem cifrada no turno da transição epocal, modulando a face enigmática de uma esfinge entre os ares clássicos de um século moribundo e vislumbrando o otimismo alvissareiro da nova centúria, transforma a escrita das indefinições na voz eloqüente dos mitos que subjazem a poética e que revigoram a letra a confundir-se, de forma indelével, com as várias imagens plasmadas, na tessitura artística de um poeta quase parisiense. Na fenda temporal, o abismo revelador de uma poética, que vislumbrou na queda a ascensão de um corpo astral; de um homem no rastro do mito clássico, em versão updated e a decifração da morte física e da morte simbólica, congeminadas no sui cidare do poeta e na tessitura que conjugou a vida e a morte sobre a face laminar do espelho.

                                    Sei a distância, compreendo o Ar;
                                    Sou chuva de oiro e sou espasmo de luz:
                                    Sou taça de cristal lançada no mar,
                                    Diadema e timbre, elmo real e cruz...(2)

Hibridismo e ambigüidade são elos indissociáveis e necessários para a compreensão da tessitura poética, que cristaliza no voo a grande verdade do texto sá-carneiriano: o espetáculo da morte. Morte que vem do alto; morte representando, paradoxalmente, o desejo obstinado pela vida. Vida idealizada, que se fragilizou diante do sonho fracassado; fratura que expôs a morbidez de um ser no rastro inegável da indefinição. No espaço onírico, a vontade cimeira de ir além de seus próprios limites, onde a fantasia mutila a realidade e os corpos, em queda livre, descrevem a trajetória do astro que perdeu o brilho, do pássaro que feriu o firmamento e do homem que se desmediu, ao vislumbrar, no voo siderado, a possibilidade de perfeição - regalia destinada somente aos seres divinais.

                                    Passei pela minha vida
                                    Um astro doido a sonhar.
                                    Na ânsia de ultrapassar,
                                    Nem dei pela minha vida...(3)

A face hologramática, que perfaz o ambiente poético em Mário de Sá-Carneiro, fascina pelo brilho exacerbado da tessitura que se move em céus ígneos como um monstro alado e de natureza híbrida - a Esfinge -, pelo astro doido a sonhar, segundo os versos emblemáticos do poeta em sua revelação acerca de sua existência no risco da tragédia irreversível e do homem que se travestiu de pássaro para tentar escapar de sua verdade essencial: o destino irrefutável para não - ser. Esta é a nódoa que trança e trancafia um dos mistérios fabulosos e simultaneamente reais na poética do desfazimento pleno e de tons dispersivos. Para ser, segundo a letra que mascara o rosto da Morte, o poeta descreve o mapa aéreo do não - ser; e o enigma, ao ser lançado como corpo, que voa no éter sem direção, completamente desnorteado, cai sobre si mesmo e funde desejo e desastre em tomo singular.

                                    Perdi-me dentro de mim
                                    Porque eu era labirinto,
                                    E hoje, quando me sinto,
                                    É com saudades de mim.(4)

A Morte em sua escrita triunfal nasce nos corredores de um certo labirinto. Lugar de confusão, morada de perdição, reduto de desaparecimento, que elimina todos os sinais da passagem de alguém por aqueles corredores turbulentos. Lá, apartado do mundo, onde o castigo é imposto por força de um rei insano - Minos -, que, morbidamente, se regozija com o aniquilamento do Outro. No Labirinto, duas emblemáticas personagens são encarceradas - Dédalo e Ícaro - para servirem de alimento para uma criatura apavorante:  o Minotauro. No mito clássico, a prisão de um homem, o artífice e construtor do labirinto, Dédalo, com seu filho, o desconhecido Ícaro. Pai e filho, vítimas de um algoz no ápice da loucura, são aprisionados em um esdrúxulo ambiente que tem entrada, mas que, propositadamente, é desprovido. Ao construir a fortaleza da morte, Dédalo, segundo o mandato real, edificou um espaço apropriado para a consumação do ato de horror, que era a caçada empreendida pelo bestial Minotauro a todos que ousassem a desafiar o tirano, que, por sua vez, se deleitava, ao saber que seus réus indefesos sucumbiam dilacerados,  na boca faminta e terrífica da criatura híbrida: aberração física em que metade do corpo era de homem e metade era de um touro assassino. Ninguém escapava aos gritos estridentes, à fúria incontida e ao ataque mortal da besta fera, que, incansavelmente, perseguia seus deseventurados até tombarem desfalecidos para serem, por fim, devorados, de forma implacável. Encurralados e sem chance de escapes, os desafortunados descobriam na labirinto sem portas de saída a desgraça, o fim de suas vidas.

                                    Asa longínqua a sacudir loucura,
                                    Nuvem precoce de subtil vapor,
                                    Ânsia revolta de mistério e olor,
                                    Sombra, vertigem, ascensão - Altura!(5)

Diante da morte iminente, Dédalo, o único que conhecia cada palmo do tenebroso labirinto e consciente de que tanto ele quanto seu filho poderiam ser devorados pelo famigerado monstro, constrói o par de asas para que Ícaro pudesse fugir por uma única via naquele lugar asfixiante e mortal: o Alto. Ao elançar suas asas, o então pseudopásssaro alcançaria os céus, conquistaria a liberdade, malograria o vaticínio inominável de um déspota, e, por fim, se livraria do desenlace trágico. A inteligência de um engenhoso artesão aliada à força de um jovem corajoso conjugava as forças de um autêntico avatar para alcançar a vitória da Vida sobre os domínios sombrios da Morte. Todavia o plano, quase perfeito, fracassou, e a parábola mítica indicou a curva da convergência, que é a verdade legendária, em seu traçado descendente, e o final dantesco, que culminou na morte de Ícaro; este não mais o filho do notável Dédalo, mas o pássaro fantástico, cujo voo ultrapassou seus próprios limites.

                                    Afronta-me um desejo de fugir
                                    Ao mistério que é meu e me seduz.
                                    Mas logo me triunfo. A sua luz
                                    Não há muitos que a saibam reflectir.(6)

Dédalo, em nome da juventude, e por ser um ancião, cede o seu lugar ao filho para que, caso este último alcançasse a terra firme, teria a liberdade garantida e viveria longe da peserguição do rei Minos; e o ciclo da existência Dédalo-Ícaro seria perpetuado, para além das fronteiras infernais de um labirinto - prisão. O pai não dispunha de força e vigor físicos, dotes que o filho, ainda, possuía. Entretanto, Ícaro era destituído da virtude mais importante e necessária nos momentos extremos da vida: a Sabedoria. O pai, por sua vez, era detentor do bom senso, do equilíbrio e da noção clara dos limites, que poderiam pôr em risco de morte a própria existência. Ser devorado por um monstro era o menor dos males, uma vez que Dédalo estava sobre as garras de uma velhice, que, dolorosa ou não, o trairia, inevitavelmente, e o jogaria nos braços da morte, mas errar o plano de voo, cujo preço a pagar seria o da própria vida seria, com efeito, o inesperado, o indesejável; o que não poderia acontecer sob hipótese alguma. Tal circunstância não estava prevista pelos cálculos do velho Dédalo.

                                   De tudo houve um começo... e tudo errou...
                                   - Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... -
                                   Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
                                   Asa que se elançou mas não voou...(7)

Ícaro, já na forma de um pássaro, empreendeu o voo, que o levaria à vitória contra um rei, um labirinto e um monstro, que triangularam a senha da tragédia no plano horizontal. Neste sentido, seu pai se tornara um corpo despedaçado, um homem sem memória;.com efeito, um desgraçado, que experienciou na pele a dor de muitos inocentes, e que, por sua causa, adentraram os umbrais de um labirinto terrífico para dele nunca mais saírem. Dominando os ares, no plano vertical, a liberdade eleva o coração de um homem à altura de um deus ou de uma divindade apoderada, sobrepujando a tudo e a todos, de forma magistral. Inicia-se, proporcionalmente, à altura do voo o trajeto da desmedida. Desmedida alimentada vorazmente por um desejo mórbido de ser; por um engano, com conseqüências nefastas, e uma ilusão de ser o que não é, de ser o que não pode ser; de não - ser. E o evento do não - ser se dá no processo exequível do Ser, ao se projetar no espaço do desconhecido, na rota do ilimitado. Ser ser em si, ser para além de/do Si, potencializando, na perda da medida, o excesso do próprio Ser; do Ser em ser - a carta de navegação aérea do desastre fatal.


                                    Não me pude vencer, mas posso-me esmagar,
                                    - Vencer às vezes é o mesmo que tombar -
                                    E como inda sou luz, num grande retrocesso,
                                    Em raivas ideais ascendo até ao fim:
                                    Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso...


                                    ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...


                                   Tombei...


                                                                      E fico só esmagado sobre mim!...(8)

O homem que se transforma num pássaro e o pássaro que se torna o sonho poético, se sustentam, ambos, no ar atraente e vertiginoso com as débeis asas de cera, que carregam na falsa penugem o aroma soturno da Morte, tão silencioso quanto o espaço aéreo que suporta a fuga fenomenal de um ser excedente de si e que esquecera de sua essência humana. No risco, o desenho da hipérbole, que denuncia a desobediência de um homem e a perda total de seus referenciais. A voz de um pai, outrora prudente, fora sufocada por um ensurdecimento da excentricidade egóica, no corpo híbrido de um ser que não era nem homem e nem pássaro. Ícaro, monstro de si mesmo, fora engolfado pelo golpe de ar que inflou seu coração e o arremessou em direção ao Sol, a sua estrela da Morte. Assim, ao lamber as suas asas, a chama ardente do Astro - Rei consome a cera e o vértice anuncia o crepúsculo de um corpo, que, sob o evento da Sideração, descobre o enigma do Desiderare. O astro deixa de ser, o desejo desaparece e o desastre fataliza a estrela que cai, o corpo que tomba e a verdade siderada, que, em última análise, é a letra tanática.

                                     Há vislumbres de não-ser,
                                     Rangem, de vago, neblinas;
                                     Fulcram-se poços e minas,
                                     Meandros, pauis, ravinas
                                     Que não ouso percorrer...(9)

Em Mário de Sá-Carneiro, a imagem de Icaro está plasmada em sua poética em permanente desastre, e o movimento de ascensão e a queda abrupta de um corpo obeso, pesado e opulento assinalam a presença constasnte e finalizadora da figura de Tânatos a sombrear a tessitura artística de um suicida na transitividade de uma época decadente, duvidosa e ambígua. Mário de Sá-Carneiro encarna a imagem do pseudopássaro e o Corpo Icárico reproduz a ação catastrófica de um escape mal fadado diante de um desejo de ser, que se desmede tragicamente. Ao se desmedir, Ícaro perde as asas (que nunca foram suas) e retorna à essência humana, através da própria morte. Ao se desastrar, Mário de Sá-Carneiro perde seus sonhos (que jamais foram seus) e promove a escuta do Eu pela via do suicídio (a morte por si próprio). Ícaro e Sá-Carneiro, neste sentido, são fabulações totêmicas de um mito singular. O primeiro, um homem que corrompeu sua natureza essencial para fugir de seu próprio destino: a Morte. O segundo, outro homem que jamais conseguiu ser o que desejava ser em vida, também vituperou-se a si: o eu que não era  o Eu, que não era o Outro, e que, por conseguinte, não era absolutamente nada. Ícaro, um homem, que, ao se travestir de pássaro, se tornara híbrido - o princípio da desgraça que o elevou acima do ponderável -, enfrentou a magnitude solar e conheceu a morte em uma queda espetacular. Mário de Sá-Carneiro, um enigma modulando o transe daquele que não é, daquele que não se define, e que se transforma em uma identidade híbrida a rodopiar melancólico na Paris solar até desvanecer embebido pela estricnina, que tombou seu corpo, icaricamente obeso, no chão dum quarto de hotel, e recebendo, por fim, de braços abertos, a Morte com a qual tanto almejara,  tanto sonhara.

                                    É subir, é subir além dos céus
                                    Que as nossas almas só acumularam,
                                    E prostrados rezar, em sonho, ao Deus
                                    Que as nossas mãos de auréola lá douraram.(10)

No mito clássico, o Labirinto, que cristaliza o jogo mortal, personificado pela criatura antropomórfica, o horroroso Minotauro, de um lado, e por seu mentor daquele inferno de paredes e caminhos que não conduzem ninguém a lugar algum - o Rei Minos -, e sem portas para possíveis escapes, ratificando o espaço da perdição e da dispersão total, do outro outro lado, é a representação em terceira dimensão da face sombria e macabra da morte. Assim, é factível deduzir que o Labrinto e o Minotauro são extensões morfologicamente anômalas do soberano que é a tradução in corporis de Tânatos em sua dimensão metabólica. Ainda que o mancebo Ícaro, com a ajuda laboriosa de seu pai, Dédalo, empreendesse, com aparente êxito, a fuga espetacular, como conseguira, o mortal estava sob os domínios inquestionáveis da Morte, que expectou a sua falha humana para triunfar sobre sua condição finita.

                                   Um pouco mais de sol - e fora brasa,
                                   Um pouco mais de azul - e fora além.
                                   Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
                                   Se ao menos eu permanecesse aquém...(11)

Na obra de Mário de Sá-Carneiro, a poética que reedita o labirinto tortuoso do mito em tela, multifacetando a Morte em gomos amargos e cruéis, há a constatação exemplar de um ser que se fragmenta em diversas personalidades; todas reféns de uma voz aprisionada, que busca no voo o resgate de si mesmo. Desse modo, o poeta que se confunde com a tessitura, que pulsa a Morte e expulsa a Vida, é o reflexo angular de si mesmo na aparência do labirinto vivo, do Minotauro invencível, do desgraçado Dédalo, do tresloucado Minos, e, finalmente, do desditoso Ícaro.

                                  Outrora imaginei escalar os céus
                                  À força de ambição e nostalgia,
                                  E doente-de-Novo, fui me Deus
                                  No grande rastro fulvo que me ardia.(12)

No voo mortal, Ícaro portou consigo a leveza de um pássaro que jamais fora, mas que sentiu o peso de sua desmedida, ao ser enganado por seus impulsos bestiais e desejar ir além de seus limites humanos. Mário de Sá-Carneiro, no voo da Morte, suportou sem êxito a carga de todos os elementos da tragédia; e seu corpo, icárico por excelência, declinou, intumescido pela megalomania que o fez pensar que, um dia, poderia ser um homem de asas, um astro doido, ou, sob a rubrica de seus desvarios, o próprio Deus.



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- Referências:


* CARNEIRO, Mário de Sá. Poesias. São Paulo : Difel, 1983, p. 46.
1. SÁ-CARNEIRO, M. (1983) p. 51.
2. Ibidem, p. 37.
3. Ib., p. 45.
4. Ib., p. 45.
5. Ib., p. 37.
6. Ib., p. 35.
7. Ib., p. 52.
8. Ib., p. 61.
9. Ib., p. 59.
10. Ib., p. 36.
11. Ib., p. 52.
12. Ib., p. 55.