18 de maio de 2013

O DESEJO DE SER (COMO UM) DEUS OU A ROTA FANTÁSTICA DO SUICÍDIO



Sombra, vertigem, ascensão – Altura! 


A associação da obra de Mário de Sá-Carneiro ao suicídio é, ainda, sombra fantasmagórica, que  paira sobre o texto de um artista, cuja obra aponta para lados muito mais densos e, portanto, obscuros, do que daqueles que emergem pela força de um criticismo arguto e em permanente trabalho de revisão da Poética do Desastre e sua personagem central: Mário, Eu-o-próprio-Outro, o Esfinge Gorda e o Aqueloutro - variações categóricas de um corpo com contornos assimétricos,  e  que, no espelho, parece ter se transformado na própria Quimera, em pele e osso - opulenta, obesa,  monstruosa, maldita e, desafortunadamente, mortal. Cenas dantescas, que fundiram vida e legenda em ícone singular no texto de um quase louco na esteira da modernidade do século XX.

Afronta-me um desejo de fugir


O assombro que sempre perseguiu o poeta - marca de um texto cravado de cenas trágicas -, além de uma vida assinalada por um comportamento esquizofrênico, à revelia do próprio artista, inflou a tessitura poética, que, conjugada com a vida, não mediu as margens e conjugou ficção e vida em uma dimensão irreal. A fusão espetacular conferiu o tom monocórdico da grande confusão, misturando a vida e a morte em espaço singular e promovendo o grande acidente, que fez um pseudopássaro desastrar-se dos céus para conhecer, no constructo da queda, a verdade imponente de suas escolhas, de seus limites e de sua própria identidade. Nascer para morrer em Mário de Sá-Carneiro significava algo que ultrapassava o sentido linear de uma vida ordinária; era, antes de tudo, a necessidade de atingir o inatingível; de ser uma deidade, acima do Bem e do Mal, cuja verdade repousaria em mitos de ascendência heroica, bizarra e, indelevelmente, trágica.

Sou labirinto, sou licorne e acanto!


Encarcerado em seu próprio labirinto, Mário de Sá-Carneiro buscou saídas para as dores da alma que o atormentavam. O suicídio, neste sentido, jamais poderá ou deverá ser interpretado como o  escape suntuoso para o autor de uma literatura confessional. O ato que culminou com o desparecimento trágico do artista - Tanatismo - é mera consequência de alguém que, indo além de seus limites, desencantou-se consigo próprio ao descobrir o esgotamento de suas forças, que julgava inexoravelmente imbatíveis. A morte de Mário de Sá-Carneiro, uma narrativa anunciada e desacreditada, se dera, de forma cabal, ao longo de sua prosa poética e de sua lírica, que deflagraram, juntas e simetricamente perfeitas, um ser abandonado, entregue à própria sorte; e, por isso, um homem preso a uma angústia imensurável. Angústia que forjou uma voz ao desejar ascender planaltos superiores não pela desobediência, mas, fundamentalmente, pela vontade inequívoca da autodeificação - processo que acomete as individualidades megalômanas em processo de autodestruição.

E arco de ouro e chama distendido...


A necessidade de ultrapassar suas fronteiras, reconhecidas por sua consciência transitória, que vagava entre a lucidez e a insanidade, e em profundo estado de silêncio, tonificava e produzia espasmos com algum ânimo, transformando o poeta em um ser anômalo, quase sob o fio de um certo equilíbrio psíquico, mas que, em verdade, era o portrait de um corpo em rodopio sem fim, num ar que anunciava uma tragédia irremediável. Havia, de um lado, o desejo audaz de atingir o Alto como conquista maior de alguém que se proclamava gigante diante de tudo e de todos. Do outro lado, havia, paradoxalmente, uma certeza da intangibilidade deste espaço augusto e destinado para poucos, quer seja por merecimento, quer seja por um processo de martírio. A sensação "quasística" era algo que dominava os impulsos afobados de um homem incomodado por sua obesidade mórbida, mas que servia de empuxo para tentar alcançar o tão sonhado espaço das divindades. Não importava para Mário de Sá-Carneiro o fim de sua aventura ou o que adviria após o seu obcecado empreendimento, mas, antes, a realização de um sonho movido à dor, à melancolia e à solidão, que marcaram a sua vida, desde a infância luxuosa até os últimos dias de sua vida, na ribalta parisiense, como um dandy, em plena decadência.

Sei a distância, compreendo o Ar:


A trajetória  de um homem,  que buscou o caminho da glória e do reconhecimento, amargando o declive espetacular como rota de colisão, em verdade, consolidou-se como o projeto de um ser, que, ao se proclamar quase Deus, não contemplou no speculum a face do humano, mas de uma entidade, que mal cabia em espaço algum. Como ser um Deus habitando a terra dos mortais? Provavelmente, fosse esta uma questão soterrada e recalcada em seu inconsciente e que o conduzia a um percurso, que não poderia ser o dos pés fincados no chão. Daí a necessidade do voo como plano de fuga da realidade, que tanto o atormentava. Um sentimento que preponderava sobre sua natureza mal compreendida e que tinha raízes nos pés inchados, pois o lado edipiano em Mário de Sá-Carneiro era, sem dúvida, a identidade insolúvel de uma criança, que viveu de cabeça para baixo; e, portanto, fadado à inevitável queda que sofrera para atingir o seu único objetivo: o de se tornar um Deus, ainda que a fatura a ser liquidada fosse a sua própria vida.

Que apoteose imensa pelos céus!


O paradoxo estabeleceu-se no sonho, às avessas, do poeta órfico, que desconhecera a loucura como força motriz de sua própria poética, malha textual que prenunciou a sua morte. Assim, o que se depreende, de forma magistral, do tecido literário sá-carneiriano é a ascensão e a queda de um astro que, para buscar a redenção de si e a consequente deificação de um ser mais do que híbrido, era necessário cumprir o ritual do autoaniquilamento a fim de que o projeto magistral de ser uma divindade lograsse, com efeito, o êxito desejado. Não cabia, portanto, a classificação de suicídio como ato desesperado diante da própria vida, pois o poeta sempre declarou que iria ao encontro da Morte. A personificação de Tânatos desmedia os desejos oníricos e os devaneios de um homem, que afirmava estar/ser doente para, por fim, confessar que quase fora Deus. O sentido de se aproximar de tal realidade, tão almejada, tão perseguida, facultava-lhe a angústia da contemplação e do vislumbre da percepção de uma verdade da qual o poeta jamais poderia ser parte integrante, e, portanto, essencial. Tal qual um castelo de areia, que se desfaz, a desconstrução da realidade em Mário de Sá-Carneiro dar-se-ia com o tombamento fatal, que lhe arrancaria o sopro de vida para conceder-lhe, à semelhança dos semideuses, um lugar de destaque nas hordas divinais. No sui cidare, um poeta, quase Deus, adentrou os portais da Eternidade; na morte apoteótica de um ator que sorveu estricnina, nasceu um deus solitário.

É subir, subir além dos céus


O triunfo da Morte em / de Mário de Sá-Carneiro é a assinatura confessa de um sujeito, que cambaleou entre os espasmos da lucidez e os delírios de uma loucura anunciada em sua prosa poética erigida sob desvãos e de sua lírica acentuadamente excêntrica: testamentos irrefutáveis, que vaticinaram a sina de um homem que veio ao mundo para ser (como um) deus. Um deus noir; uma entidade silenciada pela altivez de uma poética esfíngica; o princípio e o fim de si mesmo marcado pela tirania de ir além dos seus próprios limites. Sentenças augustas, que consolidaram o trajeto de um poeta, que desejou encontrar-se consigo próprio, no mundo além dos espelhos. A imagem perfeita era o sonho e o pesadelo; a rocha e a bruma; a água e o fogo; a vigília e o sono; o voo e a queda - realidades antagônicas, que jamais poderiam ocupar espaços singulares. Atopias que elevaram / levaram a consciência mórbida de um homem ao estádio do Nada, transformando corpo, palavra, sensação e voz em uma massa informe, plasmática, singular e plural; talvez um estágio de alguma identidade fora das margens do possível, ou quase um ser pairando sob a aura da perfectum, nos domínios invejáveis da idealização, onde habitam apenas os deuses.

A tristeza de nunca sermos dois...


Ser (como um) Deus para Sá-Carneiro constituiu-se, obstinadamente, no projeto da assunção. Assunção do Eu que, sob o grito doentio do eco, apartou-se do Si para tornar-se a letra rubra. Imagem manchada duma tinta mais do que viva; exageradamente mórbida. Na escrita suicida, a imagem daquele que não conseguiu ser; na paixão consumidora, a viagem sem volta no percurso especular; e, por fim, na rota fantástica dos excessos, um deus anônimo encarnou um poeta para morrer como divindade no mundo dos imortais.

Vêm-me saudades de ter sido Deus...


E quem disse que o poeta se suicidou? Os deuses não morrem jamais!




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Nota:
Os versos acima, que ora epigrafam as seções modulares do texto em tela, pertencem ao poema PARTIDA, de Mário de Sá-Carneiro, publicado em sua primeira obra de poesia - Dispersão.

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