9 de novembro de 2011

UM VOO PARA A MORTE

 

                                                                    A grande ave doirada
                                                                                          Bateu asas para os céus,
                                                                                          Mas fechou-as saciada
                                                                                          Ao ver que ganhava os céus.*


A obra de Mário de Sá-Carneiro é ímpar em sua constituição, em sua representação e, sobretudo, em sua morfologia, ao ultrapassar as fronteiras do idioma na qual foi escrita e ancorar a sua dimensão poética na linguagem mítica: substância que dá forma à Poética do Desastre, em todo seu esplendor e acentos significativo e metassignificativo, respectivamente. O mito, desse modo, presentificado na poética sá-carneiriana, é o mote fundador de um simbolismo sui generis, que transmutou a musicalidade, a plasticidade, os sentidos e o cromatismo, que caracterizaram a estética homônima, e revigorou a escrita de um romântico tardio com feições barroquistas, na ribalta da decadência e no Modernismo, que, então eclodia na Europa, no início do século XX.

                                     Um pouco mais de sol - eu era brasa.
                                     Um pouco mais de azul - eu era além.
                                     Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
                                     Se ao menos eu permanecesse aquém...(1)
                                                                                  
A singularidade de um texto, que emerge como mensagem cifrada no turno da transição epocal, modulando a face enigmática de uma esfinge entre os ares clássicos de um século moribundo e vislumbrando o otimismo alvissareiro da nova centúria, transforma a escrita das indefinições na voz eloqüente dos mitos que subjazem a poética e que revigoram a letra a confundir-se, de forma indelével, com as várias imagens plasmadas, na tessitura artística de um poeta quase parisiense. Na fenda temporal, o abismo revelador de uma poética, que vislumbrou na queda a ascensão de um corpo astral; de um homem no rastro do mito clássico, em versão updated e a decifração da morte física e da morte simbólica, congeminadas no sui cidare do poeta e na tessitura que conjugou a vida e a morte sobre a face laminar do espelho.

                                    Sei a distância, compreendo o Ar;
                                    Sou chuva de oiro e sou espasmo de luz:
                                    Sou taça de cristal lançada no mar,
                                    Diadema e timbre, elmo real e cruz...(2)

Hibridismo e ambigüidade são elos indissociáveis e necessários para a compreensão da tessitura poética, que cristaliza no voo a grande verdade do texto sá-carneiriano: o espetáculo da morte. Morte que vem do alto; morte representando, paradoxalmente, o desejo obstinado pela vida. Vida idealizada, que se fragilizou diante do sonho fracassado; fratura que expôs a morbidez de um ser no rastro inegável da indefinição. No espaço onírico, a vontade cimeira de ir além de seus próprios limites, onde a fantasia mutila a realidade e os corpos, em queda livre, descrevem a trajetória do astro que perdeu o brilho, do pássaro que feriu o firmamento e do homem que se desmediu, ao vislumbrar, no voo siderado, a possibilidade de perfeição - regalia destinada somente aos seres divinais.

                                    Passei pela minha vida
                                    Um astro doido a sonhar.
                                    Na ânsia de ultrapassar,
                                    Nem dei pela minha vida...(3)

A face hologramática, que perfaz o ambiente poético em Mário de Sá-Carneiro, fascina pelo brilho exacerbado da tessitura que se move em céus ígneos como um monstro alado e de natureza híbrida - a Esfinge -, pelo astro doido a sonhar, segundo os versos emblemáticos do poeta em sua revelação acerca de sua existência no risco da tragédia irreversível e do homem que se travestiu de pássaro para tentar escapar de sua verdade essencial: o destino irrefutável para não - ser. Esta é a nódoa que trança e trancafia um dos mistérios fabulosos e simultaneamente reais na poética do desfazimento pleno e de tons dispersivos. Para ser, segundo a letra que mascara o rosto da Morte, o poeta descreve o mapa aéreo do não - ser; e o enigma, ao ser lançado como corpo, que voa no éter sem direção, completamente desnorteado, cai sobre si mesmo e funde desejo e desastre em tomo singular.

                                    Perdi-me dentro de mim
                                    Porque eu era labirinto,
                                    E hoje, quando me sinto,
                                    É com saudades de mim.(4)

A Morte em sua escrita triunfal nasce nos corredores de um certo labirinto. Lugar de confusão, morada de perdição, reduto de desaparecimento, que elimina todos os sinais da passagem de alguém por aqueles corredores turbulentos. Lá, apartado do mundo, onde o castigo é imposto por força de um rei insano - Minos -, que, morbidamente, se regozija com o aniquilamento do Outro. No Labirinto, duas emblemáticas personagens são encarceradas - Dédalo e Ícaro - para servirem de alimento para uma criatura apavorante:  o Minotauro. No mito clássico, a prisão de um homem, o artífice e construtor do labirinto, Dédalo, com seu filho, o desconhecido Ícaro. Pai e filho, vítimas de um algoz no ápice da loucura, são aprisionados em um esdrúxulo ambiente que tem entrada, mas que, propositadamente, é desprovido. Ao construir a fortaleza da morte, Dédalo, segundo o mandato real, edificou um espaço apropriado para a consumação do ato de horror, que era a caçada empreendida pelo bestial Minotauro a todos que ousassem a desafiar o tirano, que, por sua vez, se deleitava, ao saber que seus réus indefesos sucumbiam dilacerados,  na boca faminta e terrífica da criatura híbrida: aberração física em que metade do corpo era de homem e metade era de um touro assassino. Ninguém escapava aos gritos estridentes, à fúria incontida e ao ataque mortal da besta fera, que, incansavelmente, perseguia seus deseventurados até tombarem desfalecidos para serem, por fim, devorados, de forma implacável. Encurralados e sem chance de escapes, os desafortunados descobriam na labirinto sem portas de saída a desgraça, o fim de suas vidas.

                                    Asa longínqua a sacudir loucura,
                                    Nuvem precoce de subtil vapor,
                                    Ânsia revolta de mistério e olor,
                                    Sombra, vertigem, ascensão - Altura!(5)

Diante da morte iminente, Dédalo, o único que conhecia cada palmo do tenebroso labirinto e consciente de que tanto ele quanto seu filho poderiam ser devorados pelo famigerado monstro, constrói o par de asas para que Ícaro pudesse fugir por uma única via naquele lugar asfixiante e mortal: o Alto. Ao elançar suas asas, o então pseudopásssaro alcançaria os céus, conquistaria a liberdade, malograria o vaticínio inominável de um déspota, e, por fim, se livraria do desenlace trágico. A inteligência de um engenhoso artesão aliada à força de um jovem corajoso conjugava as forças de um autêntico avatar para alcançar a vitória da Vida sobre os domínios sombrios da Morte. Todavia o plano, quase perfeito, fracassou, e a parábola mítica indicou a curva da convergência, que é a verdade legendária, em seu traçado descendente, e o final dantesco, que culminou na morte de Ícaro; este não mais o filho do notável Dédalo, mas o pássaro fantástico, cujo voo ultrapassou seus próprios limites.

                                    Afronta-me um desejo de fugir
                                    Ao mistério que é meu e me seduz.
                                    Mas logo me triunfo. A sua luz
                                    Não há muitos que a saibam reflectir.(6)

Dédalo, em nome da juventude, e por ser um ancião, cede o seu lugar ao filho para que, caso este último alcançasse a terra firme, teria a liberdade garantida e viveria longe da peserguição do rei Minos; e o ciclo da existência Dédalo-Ícaro seria perpetuado, para além das fronteiras infernais de um labirinto - prisão. O pai não dispunha de força e vigor físicos, dotes que o filho, ainda, possuía. Entretanto, Ícaro era destituído da virtude mais importante e necessária nos momentos extremos da vida: a Sabedoria. O pai, por sua vez, era detentor do bom senso, do equilíbrio e da noção clara dos limites, que poderiam pôr em risco de morte a própria existência. Ser devorado por um monstro era o menor dos males, uma vez que Dédalo estava sobre as garras de uma velhice, que, dolorosa ou não, o trairia, inevitavelmente, e o jogaria nos braços da morte, mas errar o plano de voo, cujo preço a pagar seria o da própria vida seria, com efeito, o inesperado, o indesejável; o que não poderia acontecer sob hipótese alguma. Tal circunstância não estava prevista pelos cálculos do velho Dédalo.

                                   De tudo houve um começo... e tudo errou...
                                   - Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... -
                                   Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
                                   Asa que se elançou mas não voou...(7)

Ícaro, já na forma de um pássaro, empreendeu o voo, que o levaria à vitória contra um rei, um labirinto e um monstro, que triangularam a senha da tragédia no plano horizontal. Neste sentido, seu pai se tornara um corpo despedaçado, um homem sem memória;.com efeito, um desgraçado, que experienciou na pele a dor de muitos inocentes, e que, por sua causa, adentraram os umbrais de um labirinto terrífico para dele nunca mais saírem. Dominando os ares, no plano vertical, a liberdade eleva o coração de um homem à altura de um deus ou de uma divindade apoderada, sobrepujando a tudo e a todos, de forma magistral. Inicia-se, proporcionalmente, à altura do voo o trajeto da desmedida. Desmedida alimentada vorazmente por um desejo mórbido de ser; por um engano, com conseqüências nefastas, e uma ilusão de ser o que não é, de ser o que não pode ser; de não - ser. E o evento do não - ser se dá no processo exequível do Ser, ao se projetar no espaço do desconhecido, na rota do ilimitado. Ser ser em si, ser para além de/do Si, potencializando, na perda da medida, o excesso do próprio Ser; do Ser em ser - a carta de navegação aérea do desastre fatal.


                                    Não me pude vencer, mas posso-me esmagar,
                                    - Vencer às vezes é o mesmo que tombar -
                                    E como inda sou luz, num grande retrocesso,
                                    Em raivas ideais ascendo até ao fim:
                                    Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso...


                                    ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...


                                   Tombei...


                                                                      E fico só esmagado sobre mim!...(8)

O homem que se transforma num pássaro e o pássaro que se torna o sonho poético, se sustentam, ambos, no ar atraente e vertiginoso com as débeis asas de cera, que carregam na falsa penugem o aroma soturno da Morte, tão silencioso quanto o espaço aéreo que suporta a fuga fenomenal de um ser excedente de si e que esquecera de sua essência humana. No risco, o desenho da hipérbole, que denuncia a desobediência de um homem e a perda total de seus referenciais. A voz de um pai, outrora prudente, fora sufocada por um ensurdecimento da excentricidade egóica, no corpo híbrido de um ser que não era nem homem e nem pássaro. Ícaro, monstro de si mesmo, fora engolfado pelo golpe de ar que inflou seu coração e o arremessou em direção ao Sol, a sua estrela da Morte. Assim, ao lamber as suas asas, a chama ardente do Astro - Rei consome a cera e o vértice anuncia o crepúsculo de um corpo, que, sob o evento da Sideração, descobre o enigma do Desiderare. O astro deixa de ser, o desejo desaparece e o desastre fataliza a estrela que cai, o corpo que tomba e a verdade siderada, que, em última análise, é a letra tanática.

                                     Há vislumbres de não-ser,
                                     Rangem, de vago, neblinas;
                                     Fulcram-se poços e minas,
                                     Meandros, pauis, ravinas
                                     Que não ouso percorrer...(9)

Em Mário de Sá-Carneiro, a imagem de Icaro está plasmada em sua poética em permanente desastre, e o movimento de ascensão e a queda abrupta de um corpo obeso, pesado e opulento assinalam a presença constasnte e finalizadora da figura de Tânatos a sombrear a tessitura artística de um suicida na transitividade de uma época decadente, duvidosa e ambígua. Mário de Sá-Carneiro encarna a imagem do pseudopássaro e o Corpo Icárico reproduz a ação catastrófica de um escape mal fadado diante de um desejo de ser, que se desmede tragicamente. Ao se desmedir, Ícaro perde as asas (que nunca foram suas) e retorna à essência humana, através da própria morte. Ao se desastrar, Mário de Sá-Carneiro perde seus sonhos (que jamais foram seus) e promove a escuta do Eu pela via do suicídio (a morte por si próprio). Ícaro e Sá-Carneiro, neste sentido, são fabulações totêmicas de um mito singular. O primeiro, um homem que corrompeu sua natureza essencial para fugir de seu próprio destino: a Morte. O segundo, outro homem que jamais conseguiu ser o que desejava ser em vida, também vituperou-se a si: o eu que não era  o Eu, que não era o Outro, e que, por conseguinte, não era absolutamente nada. Ícaro, um homem, que, ao se travestir de pássaro, se tornara híbrido - o princípio da desgraça que o elevou acima do ponderável -, enfrentou a magnitude solar e conheceu a morte em uma queda espetacular. Mário de Sá-Carneiro, um enigma modulando o transe daquele que não é, daquele que não se define, e que se transforma em uma identidade híbrida a rodopiar melancólico na Paris solar até desvanecer embebido pela estricnina, que tombou seu corpo, icaricamente obeso, no chão dum quarto de hotel, e recebendo, por fim, de braços abertos, a Morte com a qual tanto almejara,  tanto sonhara.

                                    É subir, é subir além dos céus
                                    Que as nossas almas só acumularam,
                                    E prostrados rezar, em sonho, ao Deus
                                    Que as nossas mãos de auréola lá douraram.(10)

No mito clássico, o Labirinto, que cristaliza o jogo mortal, personificado pela criatura antropomórfica, o horroroso Minotauro, de um lado, e por seu mentor daquele inferno de paredes e caminhos que não conduzem ninguém a lugar algum - o Rei Minos -, e sem portas para possíveis escapes, ratificando o espaço da perdição e da dispersão total, do outro outro lado, é a representação em terceira dimensão da face sombria e macabra da morte. Assim, é factível deduzir que o Labrinto e o Minotauro são extensões morfologicamente anômalas do soberano que é a tradução in corporis de Tânatos em sua dimensão metabólica. Ainda que o mancebo Ícaro, com a ajuda laboriosa de seu pai, Dédalo, empreendesse, com aparente êxito, a fuga espetacular, como conseguira, o mortal estava sob os domínios inquestionáveis da Morte, que expectou a sua falha humana para triunfar sobre sua condição finita.

                                   Um pouco mais de sol - e fora brasa,
                                   Um pouco mais de azul - e fora além.
                                   Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
                                   Se ao menos eu permanecesse aquém...(11)

Na obra de Mário de Sá-Carneiro, a poética que reedita o labirinto tortuoso do mito em tela, multifacetando a Morte em gomos amargos e cruéis, há a constatação exemplar de um ser que se fragmenta em diversas personalidades; todas reféns de uma voz aprisionada, que busca no voo o resgate de si mesmo. Desse modo, o poeta que se confunde com a tessitura, que pulsa a Morte e expulsa a Vida, é o reflexo angular de si mesmo na aparência do labirinto vivo, do Minotauro invencível, do desgraçado Dédalo, do tresloucado Minos, e, finalmente, do desditoso Ícaro.

                                  Outrora imaginei escalar os céus
                                  À força de ambição e nostalgia,
                                  E doente-de-Novo, fui me Deus
                                  No grande rastro fulvo que me ardia.(12)

No voo mortal, Ícaro portou consigo a leveza de um pássaro que jamais fora, mas que sentiu o peso de sua desmedida, ao ser enganado por seus impulsos bestiais e desejar ir além de seus limites humanos. Mário de Sá-Carneiro, no voo da Morte, suportou sem êxito a carga de todos os elementos da tragédia; e seu corpo, icárico por excelência, declinou, intumescido pela megalomania que o fez pensar que, um dia, poderia ser um homem de asas, um astro doido, ou, sob a rubrica de seus desvarios, o próprio Deus.



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- Referências:


* CARNEIRO, Mário de Sá. Poesias. São Paulo : Difel, 1983, p. 46.
1. SÁ-CARNEIRO, M. (1983) p. 51.
2. Ibidem, p. 37.
3. Ib., p. 45.
4. Ib., p. 45.
5. Ib., p. 37.
6. Ib., p. 35.
7. Ib., p. 52.
8. Ib., p. 61.
9. Ib., p. 59.
10. Ib., p. 36.
11. Ib., p. 52.
12. Ib., p. 55.


26 de agosto de 2011

PONTE EM RUÍNAS: O TRAJETO DO MISTÉRIO.



Um labirinto singular, que desafia a imagem clássica dos corredores monstruosos com uma porta de entrada e outra de saída, a obra do orfista Mário de Sá-Carneiro viabiliza o ingresso no caminho enigmático por vários acessos. Esta pode ser uma das definições de uma poética marcada por um confessionalismo exacerbado, mascarado pelo sentimento abissal de morte, e por uma síntese dos contrários, que subverte as realidades dissonantes do Eu, nos acordes da Alteridade, para revelar, em última instância, a malha textual daquele poeta, às avessas.

Percorrendo esta trilha ultrassimbólica, os textos sá-carneirianos são, de forma indubitável, as representações múltiplas de um ser híbrido, polimorfo, que distorce nas sombras a opulência de uma esfinge em queda livre. Queda, o grande mote da ascensão em Mário de Sá-Carneiro; tombo, o precípio que derrubou dos céus seres alados, astros, palavras e corpos obesos para que o triunfo de uma póetica, em processo de desfiguração, revelasse a outra face do abismo.

O poema 7, emblemático em seu título, pois carrega na ordem numérica o traço perfeito da divindade, é substância concêntrica e minimalista de uma personagem, que funde no Eu, em rota de colisão, a identidade cívica e a impressão artística de um homem que (di)vagava pela bela Paris decadentista, impulsionado pelos arroubos da flanerie, que (tra)vestiu um autêntico dandy, profundamente melancólico. Cenário anti-ideal para que um herói emergisse das sombras a fim de mudar o curso de uma estória fadada ao fracasso, ao embotamento, ao fim de si-mesma, e, principalmente, à falência de todas as estruturas que sustentam as entidades, no decurso da própria desconstrução (ou da destruição).

A dúvida, uma condicionante invariável, presente na poética em tela, é dessemelhante das imagens plasmadas noutros representantes da poesia e da prosa, em épocas distintas. Para além de um barroquismo excêntrico, previsto em Mário de Sá-Carneiro, sua herança romântica, em time tardio, entra em conjunção com a dualidade de um ser, que desaparecera na Idade Média, e que sobrevivia entre a dor de ser e a vontade de não ser. Barroco e Romantismo se cruzam, de forma espetacular, no tempo e no espaço, marcam a identidade confusa, que fora o autor de A Queda, e fundam, no texto esfíngico, a grande depressão: uma tessitura singular, cuja topografia é marcada por um acidentalismo monumental e um declive de dimensões sombrias. A realidade fantasmagórica e misteriosa, por este turno, ultrapassa os portões de uma existência duvidosa, onde o símbolo é esgarçado ao tensionamento máximo, angustiando um sujeito excedente, e que fratura, implacavelmente, o Eu, impedindo que pontes sejam erguidas, e as que já estavam suspensas e soberanas sobre o ar se desmoronem sobre si mesmas. Neste contracenário, não há eus, não há mins e, também, não há outros. 

Em quatro estrofes singulares, o poeta exerce sobre si mesmo a força máxima de uma entidade que se retrai, condensando-se e formulando a súmula da dúvida de um Eu, no devaneio da completude do / de Si, no arco tangível da Alteridade, mas que afunda, inevitavelmente, ao se tornar o ator principal na tragédia de um Mim indefinido, opaco e sem sentido. Assim, o artífice declara na primeira estrofe do poema exemplar:

                                       Eu não sou nem sou eu nem sou o outro,

A afirmação peremptória acerca da consciência universal sobre a sua identidade é uma navalha na carne para os leitores que intentam buscar a identidade de um sujeito travestido de mistérios, e que fabula nas mãos a morte e a vida como se fosse um ilusionismo atraente e desmedido. Ter a certeza de que a negação do Eu não é ele mesmo (o si-próprio) e nem o outro é o índice que consolida a dúvida não como um dos estados que corroem as personagens, em constante fusão, na poética dos tombamentos; mas, antes, aquela é a substância que se constitui na essência do texto sá-carneiriano; fluxo originário do qual emana a mensagem cifrada de uma tessitura monológica, melancólica, e, por fim, vertiginosa.

Cumpre acrescentar, ainda, à consciência estonteante do poeta, que a afirmação emerge da visão sobre seu espaço de convivência, em nulidade crescente, e de uma poética de convergência reflexiva, onde as vozes do eu cívico e do eu artístico foram tão somente modulações de um eco em um tom desesperado por alguém que passou a vida inteira tentando ser e, desafortunadamente, não logrou a realização do grande sonho: o encontro consigo mesmo, que eclipsaria as faces apartadas e as identidades adversas no firmamento dos seus ideais. 

O poeta prossegue na segunda estrofe:

                                       Sou qualquer coisa de intermédio:

O eu lírico, afunilando a sua condição existencial, não teme a declaração ou a proclamação que faz de si, ao se colocar na posição do intermezzo; o meio, aquilo que orbita entre o ser e o não - ser, e, portanto, ocupando o não - lugar. Neste sentido, há um vácuo pleno que, estranhamente, preenche os espaços de uma personagem que, à beira da insanidade, mergulhava no profundo ensaio da megalomania, e vivia afastado de si mesmo e do mundo que o circundava; flutuando na realidade como asa perdida de um pássaro qualquer. Estar no meio é o sinal flagrante de um homem em crescente estado de morbidez e de um eu lírico estático, que tendia, conseqüentemente, para o próprio arruinamento. O intermédio não expande o Ser, em Mário de Sá-Carneiro, mas, antes, o contrai, progressivamente, até sua implosão - fenômeno que desastra todas as realidades coexistentes, no universo da prosa e da lírica, por um lado, e na letra viva, que fora o homem cívico, com o advento do suicídio, por outro lado. 

O poeta continua em sua aparente digressão: 

                                         Pilar da ponte de tédio   

Impressiona, sobremodo, a imagem exalada - movimento sinestésico - do poema em questão. Ser o pilar da ponte de tédio, inicialmente, é uma continuação da afirmativa singular sobre não ser nenhuma instância identificatória dos sujeitos fundidos, expressa na primeira estrofe, e corroborada na segunda estrofe, quando o Eu, refém da letargia, perde seus movimentos vitais. Ora, a observação arguta do possível leitor de Mário de Sá-Carneiro  o  conduzirá  à  percepção de  que  a  ponte  está  em  franco  processo  de  desabamento. O não - ser, enraizado num eu indigente, consciente de seu estado de perdição, e agravado, ainda, pelo distanciamento semântico da personalidade do eu em (não) ser o outro, são a causa primária e irrefutável para que a pseudoestrutura que sustenta o Eu e toda sua cadeia psíquica e metapsíquica, respectivamente, se desmantele por completo. A ponte, dessa forma, desaba porque o monumento, simultaneamente, é / está frágil. Eis, portanto, o clímax da poesia e a verdade em processo de deciframento do texto angular, no decurso da análise, e que sintetiza a personalidade de Mário de Sá-Carneiro, alternando entre a entidade cívica e a entidade artística. O ser e o estar, confundidos na argamassa, que deram forma ao pilar da ponte, deflagram a debilidade de um sujeito, que se apresentava impecável ao mundo das futilidades e das coisas destituídas de quaisquer valores, através de sua aparência gorda, que o poeta tanto desprezava, mas que, em essência, não passava de um solo movediço; e, portanto, condenado à queda, ao fracasso e à descontrução de todas as realidades constituintes do Eu. O Eu, em sua amplitude significativa e metassignificativa, deixara de ser para desaparecer entre os escombros de uma personalidade que não era mais, que não estava mais. O Eu estava perdido, disperso, e sua reunificação era o ensaio do impossível na tessitura cívica e artística, em Mário de Sá-Carneiro.

A falsa estrutura, que concorreu, paradoxalmente, para o soerguimento da ponte, aparentemente vigorosa, mas que assistiu ao solapamento das estruturas daquela, então partida, denunciou a queda violenta do Eu, denotando, por conseguinte, uma realidade que, em verdade, jamais fora; i.e., o pilar de tédio denunciou duas realidades distintas no poema intitulado 7. Quais sejam: não havia pontes, pois não havia travessias. O que existia, de fato, era um desejo voraz do Eu em alcançar um Outro, tão misterioso quanto a própria natureza da ponte. E, por não haver pontes, o Outro sequer existira, também. Sobrara, portanto, antes da elevação, que não houve, da ponte que nunca existiu, o tédio, que, por sua vez, permaneceu como sobrevivente único de uma tragédia mais do que anunciada. Pilar feito de tédio ou o tédio que formou o pilar, o Ser em Mário de Sá-Carneiro é visivelmente revelado nesta síntese poética de beleza rara, pois, para além das instabilidades dos diversos eus, componentes na tessitura sá-carneriana, e reflexos da vida daquele, o que se constata, com efeito, é uma essência arenosa, fraca e imprópria para o fincamento de qualquer estrutura, de qualquer sustentáculo.

O poeta finaliza o poema:

                                         Que vai de mim para o Outro.*

O sonho é congelado nas pérfidas palavras do poeta, pois o delírio, neste caso, um desdobramento do tédio que se prolonga, após a destruição e a conseqüente desfiguração do Eu, nada mais é do a transfiguração de um sujeito soçobrado por uma melancolia sem fim. O estado melancólico, autor da angústia existencial que acompanhou o Eu em Mário de Sá-Carneiro, ao longo de sua trajetória cívica e artística, o arremessa contra o próprio mistério quando o eu lírico, no ápice da desconstrução de si, evoca o Mim como porto final e curvo para tentar a conexão com a Alteridade; jamais atingida, jamais completada. O sonho, neste sentido, uma visão megalômana do poeta, reverte sua matéria de fundação para se transformar no pesadelo, através da emergência do Mim, uma instância desdobrada do Eu, que perecera; uma lasca desprendida do sujeito que não tem corporeidade, mas apenas o traço sombrio de alguém ou alguma coisa que tivera um sentido de ser, num passado remoto, e que até as parcas memórias traíram, isolando a personagem Mário de Sá-Carneiro em uma solidão mortal.

O Mim é a última fração do ser em Mário de Sá-Carneiro, e por delinqüir o próprio sujeito, este último, sob restos de uma ponte destruída, confunde-se, irremediavelmente, com o mistério que circunda o Outro. O mistério é nuvem de fumaça a envolver o Mim e o Outro como deslocamentos do Eu, que, antes da implosão de si, já experienciava a desconstrução aguda da personalidade no itinerário da vida; tal qual fizera o poeta que, no decurso de seu trajeto existencial, viveu intensamente a Morte como se fosse o seu grande projeto; o seu prêmio, a sua vitória e, finalmente, a sua sina.

Na ponte, um mistério; no mistério, um trajeto; no trajeto, um Eu que desconhecera a si mesmo, e um mim que não fora capaz de conhecer o Outro. Entre o mim e o Outro, um Eu: o intermédio, o tédio e o próprio mistério de Ser.  


- Referência:
 * Mário de Sá-Carneiro, obra completa, volume único, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, p.82.

2 de julho de 2011

A ESFINGE DECIFRADA

                                                  
                                                              Castelos desmantelados,
                                                              Leões alados sem juba... *
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                                                              ................................................................

Crespuscular por excelência, a obra do orfista Mário de Sá-Carneiro fabula na luz eterna o mito arcaico das sombras. Sombras que perseguem, de forma aviltante, sujeitos decadentes, vidas derrocadas e seres em estado de desfazimento completo. Figurações de um Eu, que se desmembra da realidade interior; que se distancia da realidade exterior para flutuar como pluma arrancada da asa de alguma ave que, deserdada de seu bando, escala o firmamento ígneo em voos solitários.
Por este turno, a compreensão de um ser, que se desintegra em sua totalidade, a partir do afastamento que promulga de si-próprio, elucida sentenças, que revelam o quantum de verdade do texto poético do autor de Dispersão, para além de qualquer teorização ou emplacamento científico, que engesse a forma e a substância na  literatura dita sá-carneriana. Assim, o caminho para adentrar o universo do referido artífice é o mais estranho possível: é o não - caminho, a não - vereda, a não - estrada. A negação de sua própria realidade é a senha de acesso para o mundo do astro que tomba dos céus, desastrando corpos e mensagens cifradas, e dos monstros, de natureza bestial, que voam ao encontro monumental da Morte. Eros e Tânatos eclipsam seus corpos num sol que morre em poente fulgurante.
O Eu que se afasta do Si-próprio e a divagação de um Mim, sempre flutuante, como a penugem perdida de um pássaro, ou, quiçá, a asa frenética de uma borboleta - imagens que constroem o portrait de / em Mário de Sá-Caneiro -, são duas realidades semelhantes e dessemelhantes entre si, que concorrem para o estremecimento e o esfacelamento inevitável do sujeito enigmático na poética sá-carneiriana, quer seja na prosa, quer seja na lírica. O Eu, a modulação da voz daquele que tenta ser, mas que jamais alcança o sonho ideal; o Si-próprio, quase uma entidade ou uma instância idefinida; e o Mim, o alvo final de um processo melancólico, que culmina na desconstrução do ser na poética em constante movimento de ascensão e queda. Ícaro empreende o voo magistral de fuga de um labirinto assassino, mas o mar o acolhe, após seu ato desmedido de desobediência. Cenas trágicas para um Eu, apartado do Si-Próprio, esvaziado de sentidos e,   por conseguinte, destoante de um Mim, em estado de perdição. 
No tocante ao Eu, a poética sá-carneiriana denuncia, de forma convincente, quão próxima é a malha textual em tela da ambiência romântica, que plasmou as mentes dos baluartes do Romantismo, ao longo do século XIX. O Eu, para os românticos, fora a base de sustentação de uma literatura, que fundou a pátria dos idealismos e das ideologias. Todavia, à traição empreendida pelos burgueses, à época da Revolução Francesa, seguiu-se, por conseqüência, o estado de frustração profundo, que acometeu os românticos, e que perdurou até a útltima geração daqueles, também denominada Ultra-romantismo. Frustração que minou as estruturas do sujeito, que descobriu na morte o escape final de um projeto fracassado.
Mário de Sá-Carneiro, classificado pela crítica literária de romântico tardio, aproximou-se da estética fracassada, nos tempos da Belle Époque, por causa das temáticas relacionadas à solidão atlântica, da melancolia sem fim, e, principalmente, da morte como ato supremo, inaugurando um modelo de herói, às avessas. No entanto, o parentesco que uniu o poeta órfico a seus pares, em períodos distintos, não reeditou as agruras dos românticos tais quais como foram absorvidas pelo poeta português. Fora de seu tempo, e com a face deslocada para este passado inglório, Mário de Sá-Carneiro, através de seu texto ímpar, em que a dispersão do sujeito constitui-se na tônica basilar de sua obra confessional, onde o eu cívico (o homem) se confunde, propositalmente, com a personagem (eu artístico) travestida e mascarada de várias formas, no texto prosaico e no texto lírico, ambivalentemente, individualiza-se para dar as costas a um tempo marcado pelo frenesi e por um progresso selvagem, que prometia o malogro do Homem em detrimento de um modernismo, e que, por sua vez, engoliria os textos, as palavras e os seres. Cravado em seu tempo, portanto, e com o olhar lançado para uma época, que jamais alcançaria, o Eu fragmentado de sua obra, quase mítica, promulgaria uma realidade para além do Si; virtualmente localizado no não - espaço; exuberantemente adimensional. O Eu, em última análise, constitui-se no elo que se quebra diante da possibilidade do sonho para atingir o estado pleno de felicidade, que se transforma no pesadelo mórbido, marcado pela desgraça e pelo projeto de auto-aniquilamento, este útimo, levado a cabo pelo poeta, ao cometer o suicídio, no fatídico 26 de abril de 1916, em Paris.
No que tange ao Si-próprio, a malha textual em Mário de Sá-Carneiro alude simbólica e metassimbolicamente à transfiguração do Eu, que centraliza o desejo exacerbado de um sujeito em desvio constante, e que, em cuja parabólica, os incidentes tornar-se-iam cógidos cifrados para a construção de um desastre iminente. O Si-próprio modula a face da Megalomania e deflagra, na tessitura artística, nos níveis narrativo e lírico, respectivamente, a face narcísica de um sujeito que descobre no espelho a trajetória do não-ser. A vontade de ser o que não pode, o quase como estado de incompletude e o excesso de subjetividade rompem  as cadeias do ego e criam uma instância vazia, e, neste sentido, entregue à própria sorte; à deriva. O Si-próprio, em Mário de Sá-Carneiro, é tão somente um apelo a uma voz que se torna refém das armadilhas mortais de um eco doentio, mântrico, e, em vias finais, maldito. Rubricas extraídas de um romantismo mais do que tardio, e concorrentes para a construção da obesidade sentimentalesca na personagem que se funde no texto, e no texto que se confunde com a própria morte. O Si-próprio, na condição de reflexo oblíquo, produziu, na zona especular e abissal do homem que busca para além do Eu a sua verdade existencial, a decifração do grande enigma de sua vida, magistralmente tecido em sua literatura: a solidão de contornos universais, e que faz doer na alma um passado arcaico no qual toda Humanidade vivera.
No que concerne ao Mim, o sujeito realiza o grande sonho: o de ser, através do não - ser. A migração fragmentária e ontológica do Eu para o Mim determina a equação da morte na obra de Mário de Sá-Carneiro, na ilustração daquela na tesstitura artística, através das personagens e dos ambientes em tons decadentes, e da personagem que se funde na entidade cívica.  A fratura das realidades é a característica do Mim, que não se sustenta em paradigmas lógicos ou reais, mas, antes, finge buscar o estado de realização plena para tombar como astro sem luz em solos movediços. Tudo é queda; tudo é perdição; tudo é dispersão. O Mim fabula o enigma da solidão, que vislumbra na Morte a possibilidade de estancar a dor de um homem que se quer mítico; talvez um deus, um fantasma ou qualquer coisa indefinida a pairar nos escaninhos soturnos da recordação.
Mário de Sá-Carneiro e sua letra literária são vitrais lúdicos de uma verdade que não é revelada pelo olhar hipnótico de um monstro, que amargou o seu próprio fim, ao ser descoberto por um andarilho sem pátria e quase sem destino. Edipianamente, o pobre moço das ânsias, ao contemplar a forma bestial da Esfinge, na hora da morte, descobriu na queda a redenção de um corpo desmantelado. Astro, mito ou semi-deus, Mário de Sá-Carneiro reunificou o Eu, o Si-próprio e o Mim em instância singular. A Esfinge decifrada é o silêncio de Tânatos, que transforma as dores humanas em brilhos siderados na eternidade dos deuses sem nomes.


Nota: 

* Mário de Sá-Carneiro, obra completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, p.63. 

3 de junho de 2011

Mário de Sá-Carneiro: o Esfinge Gorda


Mário de Sá-Carneiro, representante legítimo das sombras decadentistas, nascera em 1890, em Lisboa, para despontar, em uma vida marcada pela brevidade, como uma das figuras mais emblemáticas na cena artística lusitana.

Ícone augusto na literatura portuguesa, Mário de Sá-Carneiro, ao lado de Fernando Pessoa e de outros artistas contemporâneos, protagonizou o movimento modernista, e timbrou a sua insígnia inconfundível, exuberante e esfíngica, ao expressar, em sua lírica e narrativa, o desejo colossal de ser, para além dos limites humanos - espaço etéreo no qual os heróis triunfam sobre os deuses e os mitos cristalizam suas verdades, sob a letra imponderável da eternidade. Fronteiras abissais da desmedida, e, portanto, berço dos sonhos megalômanos, onde as vertigens tombam os homens diante dos enigmas bestiais e corpos siderais despencam dos céus que ardem em fogo.

A literatura de Mário de Sá-Carneiro é a confissão ímpar de um homem que, na errância maldita, funde a personagem cívica e a personagem artística, formando um ser, quase divinal, no risco de uma escrita, também quase autobiográfica. O prenúncio da morte como traço de um fado desejado constitui-se na grande trama, em que o drama da existência de uma personagem solitária em um mundo moderno é o fôlego de uma vida que tende a desaparecer sob o crepúsculo agudo da melancolia.

Peregrino na cidade das luzes, flaneur por opção e voyeur por excelência, Mário de Sá-Carneiro carregou em sua tinta mórbida a solidão que acometeria a Humanidade, e que o tornou refém em um mundo dominado pelos automóveis e pelos cafés borboleteados com gentes de toda sorte; todas seduzidas pela futilidade citadina e pela luxúria infinita.

Lepidóptero, Mário de Sá-Carneiro buscou no Outro o desejo irrealizável. Sua trajetória, cívica e artística, determinada pelo quase, malogrou; e sua angústia, móvel de sua existência corroída por fracassos e inglórias, elevou a sua dor a patamares insuportáveis. Em crises constantes, as cartas a seu grande interlocutor - Fernando Pessoa -, revelariam a dissonância de um homem vacilante em descompasso com a própria vida.

A alteridade misteriosa e inalcançável, a solidão oceânica, o distanciamento do mundo e a obesidade da qual não poderia se livrar, além de uma personalidade esquizofrênica, compuseram a grande cena teatral para a performance de um ator à margem de si-mesmo em um espetáculo final.

Em 1916, em um quarto de hotel, em Paris, paramentado com smoking e tendo ingerido alguns frascos de estricnina, Mário de Sá-Carneiro se despede da vida, consumando, de forma magistral, a queda e a ascensão de um astro em um monólogo desiderático.

À semelhança do trágico Édipo, Mário de Sá-Carneiro encerra sua vida literária, confundindo desejo e enigma e eclipsando o homem e o artista em uma poética singular. Na cena dantesca do suicídio, o nascimento de um mito.

A Esfinge decifrada voa para a morte e o destino arruina o oráculo.

Os poetas não morrem; eternizam-se.




26 de maio de 2011

ÚLTIMO ATO


Da estricnina, o gole;
da gota, o veneno...
Escorpiões no copo que o poeta bebeu
até a morte!


Onde estará o Outro, meu herói?


Do corpo, o excesso;
da alma, a falta...
A vontade desceu para além das constelações azuis...
Quem, além de Ti, arrotará o Império Astral?


Da palavra, a poesia;
da verdade, o espetáculo -
- cenas dantescas num quarto de hotel!


Em qual labirinto me perdi?


Da Antologia Poética Corpografia, de João Carlos de Souza Ribeiro, dedicado ao ícone máximo de modernismo luso, o escritor Mário de Sá-Carneiro.